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quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Purificado

 Seus braços doíam e todo aquele sangue (que não era dele) começava a grudar suas roupas. Não devia ter usado um machado, mas era o que tinha.

Atirou-se no velho sofá, desabou era o termo certo, não sentia medo, nem raiva, nem nada. E fora uma raiva descontrolada que o levara a aquela situação. Mas agora não havia o que lamentar.

Não pensou nem mesmo nas consequências, ele só queria descansar. Ajeitou os óculos, e sujou as lentes de sangue. O sangue que não era dele. Foi rápido, piedoso ele diria.

O cheiro da gasolina que ele havia espalhado subiu-lhe as narinas.

Acendeu um cigarro, seu último, e deu uma baforada profunda. O cigarro também tinha gosto de sangue. Ele estava feliz.

Deu mais uma tragada e jogou o cigarro onde a gasolina se concentrava. Foi instântaneo, as chamas se espalharam num clarão. Não gritou quando elas subiram por suas pernas, nem se mexeu, sentiu-se purificado.

Sem dor, sem medo e limpo.


         Fim

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Tratamento

 Era preciso, era necessário. Talvez até mais que isso, havia ali uma urgência vital. Sua vida havia chegado à um ponto onde um caos psicológico influenciava perigosamente a rotina diaria de todas as coisas.

As explosões de raiva, o fato de ver em todas as mulheres uma possibilidade de sexo, e a impulssividade o estavam atormentando.

Ele que era muitos, e ao mesmo tempo nenhum, estava sofrendo. E o que era pior, fazendo os outros a sua volta sofrerem também.

Como um idiota, que não sabe que é um idiota.

Como um morto, que não sabe que está morto. Um fantasma inconveniente, arrastando correntes por uma casa velha.

Sendo assim, ele decidiu procurar ajuda, por ele, e por quem ele amava. Iniciou uma terapia, contra sua própria vontade. Na sua visão um tanto, ou muito preconceituosa. Fazer terapia era coisa de gente fraca, que não aceitava e entendia os próprios demônios e monstros dentro do armário. Ou simplesmente coisa de maluco mesmo.

A profissional.

Ela era pequena, tinha um rosto bonito, mãos pequenas de um aperto firme, disso ele havia gostado. Ela tinha tornozelos bem bonitos também, uma fina corrente dourada os adornava. Essa criatura de olhos escuros e cabelos pretos seria a detentora dos seus mais obscuros segredos.

A primeira sessão.

Falar doía, e doía muito. Mas ainda assim ele não falava tudo. Dava pequenas amostras, migalhas de um pão amargo que eram a sua vida, a sua psiquê, um quebra-cabeças distorcido com milhares de peças que eram a sua mente. Afinal de contas, ela estaria lidando com as neuroses de mais de um. Não mentiu em nenhum momento, mas omitiu. Talvez pela a segurança dela, ou simplesmente por estar passando por uma nova situação.

Sentiu que não fazia isso só por ele, mas também por quem ele amava. A Fada Branca, que agora era uma Bruxa.

E ele falou também de quase todas as mulheres da sua vida, e de como havia estragado tudo.

A cada sessão ele saía um pouco mais leve, como que se despindo de uma pesada armadura, sentia-se fragilizado. E sentia também que todos os outros dentro dele, pelo menos os mais radicais lutavam contra o que ele estava fazendo. Ele falou de vínculos, os quais não conseguia se desfazer, elos sentimentais dificeis de quebrar, mas que ele sentia que estavam enfraquecendo.

Falou daquele que sempre esteve alí, nas sombras da sua mente observando todos os outros. Dan Dan. O fidalgo, Grão-Duque que decidira controlar todos os outros. Um dândi assustador que mudava de forma, e era todos e um só. Falou, falou e falou, e sentiu-se humilhado por se expôr tanto. Mexeu em feridas que ainda não haviam cicatrizado.

Falou dos "eventos brancos", dos momentos de cólera, mas que fez coisas boas também, seguindo unicamente seu coração.

Mas ainda assim muita coisa precisava ser dita.

Ele não tinha medo.

Medo de perder seus filhos, medo de não estar de acordo com as expectativas deles.

Fora isso, não temia nem Deus e nem o Diabo, não temia homem algum.

Mas tudo isso, eram assunto para as próximas sessões.


                          FIM


Reverendo Felix Fausto


terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Câncer De Cara

 Parece que tem coisas que só acontecem comigo.

Depois dos 50 descubro que tenho Rosácea, não o jeito mais leve de Rosacea, aquela que fica só na vermelhidão no rosto.

A minha tinha que ser a pior, aquela em que surgem umas pústulas horriveis, e o rosto fica parecendo uma pizza calabreza.

Deus realmente não gostava de mim.

O que me incomodava não era nem pela questão estética, afinal, eu não era nenhum adolescente.

Mas aquela merda toda na minha cara doía, e doía muito!!!

A porra toda não tinha cura, só tratamento com remédios caros, que nem sempre eu podia pagar. Minha mulher me ajudava, e eu nem sei como ela não vomitava olhando para a minha cara.

Silvia Anne era realmente uma mulher especial, talvez eu nem a merecesse.

Mas voltando ao assunto, o que complicava eram os "gatilhos" que faziam aparecer as feridas, eram injustamente variados.

Café, alcool, comida apimentada, sol e estresse, principalmente estresse.

E não era justo, porque eu dormia estressado e acordava estressado. A vontade que eu tinha era de matar alguém!

Vivia em um tempo como se tudo viesse contra mim, tudo no inicio ao fim do meu dia era para testar minha paciência.

Então tinham as piadinhas.

"Nossa, tá batendo muita punheta, olha essas espinhas!"

"Ué, tá na adolescência?"

"Quanta pereba, kkkk"

Claro que logo tratei de dar uma invertida neles.

Como os inúteis desconheciam a doença eu falava num ar muito sério.

"É cancer de cara!"

Daí os ânimos já mudavam, para complicar eu era dramático, dizia que era incurável, que a carne do meu rosto iria basicamente apodrecer.

Eles ficavam extremamente incomodados.

Alguns pediam desculpas, outros sem saber o que dizer. E eu continuava;

"É genético, meu pai perdeu o nariz e um dos olhos."

Uma vez até falei que os seios de minha mãe caíram. Era legal porque assim o assunto não se prolongava.

Mas a idéia de me tornar uma coisa monstruosa, causando medo e nojo nas pessoas me agradava, não parecia de todo ruím. Um monstro sensível como a criatura de Frankenstein, vivendo escondido a margem de tudo e de todos.

E é assim mesmo.

                   

                                  FIM

FELIX FAUSTO